Os Mundos na Cosmologia Sámi

Os Mundos na Cosmologia Sámi

Dentro da espiritualidade do povo Sámi, a realidade não é composta apenas do que os olhos podem ver. A existência se manifesta em três grandes esferas interligadas, três mundos que coexistem e se influenciam mutuamente. Esses mundos são acessíveis aos Noaidis, os xamãs, por meio de rituais, cantos sagrados (joik) e sobretudo do som hipnótico do goavddis, o tambor cerimonial.

Cada mundo carrega sua própria natureza, seus habitantes, suas regras espirituais e seus mistérios. Juntos, formam uma visão completa da vida, onde tudo está conectado — desde os animais e as plantas até os ancestrais e as forças cósmicas.


Basse-várri – O Mundo Superior

Basse-várri é o plano mais elevado na cosmologia Sámi. Literalmente, significa “montanha alta” ou “altura sagrada”, representando o mundo celestial. É onde vivem os deuses, as forças primordiais e os espíritos elevados, seres de grande poder e pureza.

Entre as entidades mais reverenciadas neste plano está Beaivi, o espírito do Sol, que sustenta a vida, garante o crescimento das plantas, o retorno da primavera e o bem-estar dos rebanhos de renas. Também habitam aqui Radien-attje (o Grande Espírito Pai), Radien-akka (a Mãe), e Radien-pardne (o Filho Divino), formando uma tríade sagrada que influencia a ordem do universo.

O Basse-várri é percebido como um lugar de luz intensa, onde predominam a harmonia, o equilíbrio e a sabedoria superior. Contudo, ele não é acessível por qualquer um. Apenas os Noaidis treinados, por meio de profundo transe e utilizando os símbolos do tambor, conseguem projetar sua consciência até esse plano para buscar orientação, bênçãos ou restabelecer o equilíbrio quebrado no mundo terreno.

Este mundo influencia diretamente:

  • A fertilidade da terra.

  • Os ciclos solares e as estações.

  • O equilíbrio espiritual dos seres vivos.

  • A proteção e orientação espiritual das comunidades Sámi.


Mánnu – O Mundo Terreno

Mánnu representa o plano da realidade material, o mundo visível onde vivem os humanos, os animais e os espíritos da natureza. Este termo também carrega a associação com a Lua, que regula os ritmos e os ciclos naturais, especialmente na vida dos povos pastores e caçadores.

Aqui é onde ocorre o dia a dia — o pastoreio das renas, a pesca, a caça, a coleta e as atividades sociais. Contudo, o Mánnu não é visto como um mundo inferior ou desconectado do sagrado. Pelo contrário, ele é repleto de presenças espirituais. Cada montanha, cada pedra, cada árvore e cada rio possui consciência, guardiões e uma força vital própria.

Os Sámi sabem que viver em equilíbrio com Mánnu é essencial para garantir saúde, prosperidade e harmonia. Isso se manifesta na prática constante de oferendas, nas danças, nos cantos e no respeito absoluto pelos animais e pelas terras.

No Mánnu vivem:

  • Os Sáiva: espíritos da natureza, guardiões de lagos, montanhas e bosques.

  • Os animais sagrados, que possuem duplas existências — física e espiritual.

  • As pessoas, que, segundo a cosmologia Sámi, também possuem partes espirituais que se comunicam constantemente com os outros mundos.

Mánnu é o centro da experiência humana, o elo entre os mundos superior e inferior.


Jábme-áibmu – O Mundo Inferior

Jábme-áibmu, que significa literalmente “o mundo dos mortos” ou “o reino dos espíritos ocultos”, é o plano onde habitam os ancestrais e os espíritos daqueles que já deixaram o corpo físico.

Longe de ser visto como um lugar de punição ou sofrimento — como em certas concepções religiosas ocidentais —, o Jábme-áibmu é um mundo de continuidade, de retorno, de introspecção e de mistério. É lá que residem as memórias ancestrais, os espíritos familiares e as forças que regem os ciclos ocultos da natureza.

Os Noaidis frequentemente viajam até este mundo para:

  • Buscar informações esquecidas.

  • Recuperar partes da alma que se perderam em traumas.

  • Conectar-se com os ancestrais e pedir orientação.

  • Restabelecer laços quebrados entre os vivos e os mortos.

O Jábme-áibmu também é a morada de certas forças que podem ser perigosas ou desafiadoras, exigindo do Noaidi grande preparo, disciplina e proteção espiritual.

Este mundo está associado:

  • À escuridão da terra.

  • Ao inverno, à introspecção e ao descanso da vida.

  • À renovação, já que tudo que morre retorna como semente.


A Interconexão dos Mundos

Na visão Sámi, os três mundos não estão separados. Eles se sobrepõem e interagem constantemente. O que acontece em Basse-várri reflete em Mánnu e em Jábme-áibmu, e vice-versa. Essa teia de interdependência garante que a vida se mantenha em equilíbrio.

Quando esse equilíbrio se rompe — seja por doenças, desastres naturais, desequilíbrios sociais ou espirituais —, é papel do Noaidi intervir. Ele usa seu tambor, seu joik, suas ferramentas e seu próprio corpo como ponte para restaurar a harmonia perdida.


Representação no Tambor (Goavddis)

Os tambores dos Noaidis frequentemente trazem representações desses três mundos:

  • No topo do tambor: Basse-várri, com o Sol, os deuses e os espíritos celestes.

  • No centro: Mánnu, com os humanos, as renas, as florestas, os rios e os animais.

  • Na parte inferior: Jábme-áibmu, representado por cavernas, ossos, túmulos, labirintos ou símbolos dos ancestrais.

Cada linha, cada ponto e cada desenho no tambor não é decorativo. É um mapa funcional, usado para guiar a consciência do Noaidi em suas jornadas espirituais.


Conclusão

Na cosmologia Sámi, não existe separação entre o espiritual e o material. Cada pedra, cada floco de neve, cada estrela no céu e cada sopro de vento está profundamente ligado a essa rede de mundos. Viver segundo essa compreensão é reconhecer que a vida é sagrada, que os ancestrais caminham conosco e que toda ação ecoa não apenas aqui, mas também nas alturas de Basse-várri e nas profundezas de Jábme-áibmu.

O Noaidi é aquele que mantém essa conexão viva, guiando seu povo, protegendo os laços invisíveis e garantindo que, geração após geração, o fio sagrado da existência nunca se rompa.



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